quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

ESTE ARTIGO CORRESPONDE À NOSSA PARTICIPAÇÃO NO SEMINÁRIO SOBRE O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO ORGANIZADO POR PAULO EMILIO MARTINS NA EBAP/FGV. ESTA É MAIS UMA INICIATIVA QUE DEMONSTRA O INTERESSE CRESCENTE PELA CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DA DEPENDENCIA E DO SISTEMA MUNDIAL , CONFORME VIMOS CHAMANDO ATENÇÃO NO NOSSO BLOG.

O Brasil em Evidência: A Utopia do Desenvolvimento

Mesa: Teoria da Dependência: o Brasil na Era da Globalização
Dia 27 de novembro de 2008

Palestra Prof. Theotônio dos Santos

Estava vendo uma coisa curiosa todos os homenageados neste Simpósio são meus amigos. Não conheci pessoalmente o Josué de Castro, mas trabalhei com a Ana Maria e conheci a obra dele muito jovem; o Paulo Freire foi muito meu amigo, estive na casa dele em Harvard e também na Suíça; o Darcy Ribeiro foi amigo de tantos anos; o Octavio Ianni, companheiro, um dos poucos amigos de São Paulo que nos recebeu em sua casa quando estávamos clandestinos, o pessoal tinha um pouco de medo de receber um clandestino em casa; o Celso Furtado, eu inclusive coordenei a campanha para o Prêmio Nobel; o Milton Santos, amigão, incrível, grande amigo participou da Reggen; o Florestan Fernandes foi quem me indicou para dirigir o Centro de Estudos Sócio-Econômicos (CESO) do Chile ele estava lá quando cheguei e me indicou ao Eduardo Arroyo, diretor do Centro, para trabalhar com ele; o Nelson Werneck Sodré foi da comissão julgadora do meu trabalho de mestrado; e o Guerreiro Ramos foi o meu padrinho de casamento!
Na Sociologia o grupo é muito pequeno, isto é uma característica muito latino-americana. Nós somos uma elite, uma oligarquia muito pequena, quase todos do mesmo grupo social, a classe média no nosso caso. Todos tinham essa origem e circulavam em um ambiente muito restrito. Era a USP em São Paulo e no nosso caso a Faculdade de Economia de Minas Gerais.
Esta introdução serve para situar um pouco esta história, pois este grupo de homenageados corresponde a duas ou três gerações de intelectuais que tem uma continuidade de pensamento. Isto é uma coisa rara na America Latina, porque aqui cada geração tem uma referência francesa ou norte-americana, o centro do pensamento está fora. Cada um produz em função do que está se fazendo na Europa ou nos Estados Unidos e a continuidade do nosso pensamento é difícil de assegurar.
Organizei em conjunto com Ruy Mauro Marini, um livro em dois volumes para a UNESCO, intitulado: “Pensamento Social da América Latina no Século XX”. Este livro teve uma boa divulgação, mas não houve tradução para o português e por isso o impacto dele não existiu no Brasil. As nossas editoras têm muita resistência em publicar livros sobre a America Latina, durante um longo período, exatamente o período em que nós voltamos do exílio, a partir da década de 1980. Dizia-se “America Latina? Isso não existe. América Latina não tem importância.”. Havia um desinteresse total pela América Latina.
Após 1989, também há um desinteresse pelo marxismo, pois, parecia que com o fim da União Soviética, o marxismo havia fracassado. A produção intelectual de toda uma corrente de pensamento da América Latina parecia um pouco fora de contexto. É verdade que já na década de 1990 começa a se recuperar. Atualmente retomamos o interesse na América Latina por causa de sua integração cada vez mais latente. As editoras começam a ter algum interesse pela América Latina, mas ainda muito frágil. Primeiro porque elas não conhecem e segundo porque tem medo de não haver público.
A descontinuidade de pensamento em nossa região é muito grave, faz parte da nossa situação de dependência. Não acumulamos o conhecimento, não acumulamos a análise da realidade, porque para acumular você tem que produzir um caminho de seqüência do conhecimento. Isto exige também uma capacidade de gerenciar e administrar, uma capacidade de condução que permita garantir a reprodução deste conhecimento para mantê-lo e avançá-lo.
Este Seminário realmente é muito importante porque está fazendo um esforço para garantir esse conhecimento. Marini fez um trabalho similar a este no Centro de Estudos Latino-Americanos (CELA) da Universidade Nacional Autônoma Do México (UNAM).
Quando as universidades foram fundadas na América latina, principalmente na América Hispânica a relação entre o poder e a universidade era forte, para se ter uma idéia, o vice-rei assistia as apresentações das teses que eram lidas dos formandos e professores da universidade. No Brasil, nós não tivemos universidade até a década de 30 do século passado, mas no caso espanhol, eles estavam diante de civilizações importantíssimas, o Darcy Ribeiro, por exemplo, apresenta isso em seu livro “A Universidade Necessária”.
O poder hispânico para dirigir a massa de indígenas, teve que formar uma elite indígena. Então, se investiu fortemente nas universidades para formar a elite indígena com a qual puderam estabelecer uma dominação. O papel da Igreja foi decisivo. A coroa espanhola, assim como a portuguesa, era católica. E o mundo foi dividido entre estes dois países, o papa dividiu o mundo entre Espanha e Portugal. O primeiro grande debate teológico da região desejava saber se os indígenas tinham ou não alma. Era um debate fundamental, pois, se os indígenas não tivessem alma podia-se escravizar-los à maneira como se fez com os africanos. Mas se tivessem poderiam converter-se em cristãos e, portanto, em súditos do Rei. O Rei conseguiu impor a Igreja sobre os conquistados. Conseguiu impor sobre eles a idéia de que eram cidadãos. A Coroa, para poder manter seu controle teve que valorizar o indígena.
A questão da dominação espanhola exigia o conhecimento, uma formação de lideranças, seja dos indígenas ou dos crioulos. A Espanha teve uma região extremamente rica e com um contingente populacional significativo sobre sua dominação. Desta forma, a universidade aqui na América Latina teve e tem um papel decisivo na estrutura e na reprodução do poder. Dentro da sociedade de origem hispânica a universidade tem historicamente um papel importante.
No Brasil, quando falei destes amigos homenageados aqui que fizeram parte da reestruturação acadêmica e política nacional, veio o regime militar que entrou em choque com todas estas lideranças. Nenhum deles colaborou com o regime militar. Durante o regime militar o sistema perdeu seus ideólogos, não se conseguiu criar ideólogos próprios. Depois ocorreu outro fenômeno, o giro intelectual e ideológico que converteu o processo crítico originário da Teoria da Dependência em um instrumento de justificação do sistema, um trabalho operado pelo Fernando Henrique Cardoso e especificamente o grupo da USP e do CEBRAP. Cardoso fez uma virada ideológica iniciada em 1974, quando começou a entrar na vida política brasileira pelo MDB e em 1978/79, quando estávamos para retornar por causa da Lei de Anistia. É neste ano que ele escreve o artigo contra as formulações de Marini mudando o seu tom nas críticas.
Nós tínhamos mostrado que a dependência era uma situação vivida pela região em seu conjunto. A nossa situação de subdesenvolvimento era parte do processo de expansão do capitalismo mundial. Era uma forma do desenvolvimento, era o outro lado do mesmo fenômeno. Refutando o que a Teoria do Desenvolvimento dizia sobre sermos povos atrasados e agora, em contato com a civilização e com os modelos de comportamento moderno, iríamos evoluir.
Fomos mais modernos que os EUA e muitos países europeus. Nós já éramos grandes centros econômicos, grandes centros tecnológicos e grandes centros de pensamento. Os americanos foram criar sua primeira universidade no século XVIII e já tínhamos as nossas, não as brasileiras, mas pelo menos os nossos companheiros mexicanos, colombianos, bolivianos e peruanos já tinham suas universidades articuladas com o sistema de poder. Nós tínhamos tecnologia avançada, nós exportávamos produtos agrícolas para o mundo. A exportação de açúcar, por exemplo, era uma das exportações mais importantes da época e era produzida com a tecnologia mais avançada. Não éramos uma sociedade feudal que começava a se modernizar.
Como produto do capitalismo dos séculos XVI, XVII e XVIII e conseqüentemente da expansão mundial deste capitalismo, fomos criados organizando nossa economia para atender a demanda do mercado mundial, nas economias dos países centrais este processo se deu no período posterior a consolidação de seus mercados internos.
Por isso inclusive é uma visão errada quando afirmam que as economias latino-americanas eram fechadas e agora estão se abrindo. A economia da cana-de-açúcar era uma economia fechada? A cana-de-açúcar era produzida para a Europa fundamentalmente. O ouro que nós tínhamos seria ótimo se permanecesse aqui. Seríamos uma potência, nós fomos a maior renda per capita do mundo em Minas Gerais. Mas o ouro ia todo para Portugal e de lá para a Inglaterra.
Os portugueses não queriam mais trabalhar, pois recebiam este ouro. Tanto Portugal como a Espanha entraram numa decadência, na sua agricultura, e no seu artesanato. Porque o resultado do domínio colonial era o suficiente para eles não precisarem mais trabalhar. Aliás, isto é uma característica dos sistemas imperialistas, o centro hegemônico do imperialismo tende a converter-se em uma zona parasitária, o parasitismo é uma das características descritas por Lênin no “O Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo” como elemento fundamental do imperialismo, crescer baseado na expropriação das outras economias. Com o setor militar suficientemente forte para garantir a dominação e eventualmente intelectuais para justificar todo o sistema.
É preciso gerar a ideologia de justificação dessa situação de domínio evidente, mas a produção propriamente se compra do exterior. As grandes unidades agrícolas da Inglaterra se converteram em campos de golfe, porque a terra não precisava mais produzir. De 1970 até hoje, os Estados Unidos produziram um déficit comercial gigantesco, neste ano de 2008, este déficit comercial deve estar em 600 bilhões de dólares, quase a economia do Brasil.
Hoje os Estados Unidos é basicamente um país devedor, e esta dívida aumentou muito com as guerras, evidentemente porque as guerras são caras e para financiá-las eles tiveram que desapropriar as regiões onde elas ocorreram. Os colonizados são que pagam as guerras.
Cardoso parte desta mesma colocação básica, criticando as correntes que estavam defendendo a idéia da modernização como o elemento chave de compreensão da nossa realidade.
A nossa condição de subdesenvolvido surge com a colonização, com a nossa especialização para exportar produtos agrícolas e matérias-primas sobretudo os minerais preciosos, o ouro e a prata. As zonas chamadas de subdesenvolvidas foram zonas de grande desenvolvimento no passado. O nordeste foi um dos maiores centros do mundo de exportação e não é por acaso que Gilberto Freire desenvolve seu estudo sobre a Casa Grande, que é uma empresa moderna de produção para exportação, com uma parte voltada para o atendimento doméstico. Toda essa economia vai se desenvolvendo em função do setor exportador. O caso de Minas Gerais, por exemplo, desenvolve em torno dela uma zona urbana, de gado e de cereais, que são consumidos pelo centro rico onde se organiza a exploração do ouro.
Essa economia era chamada até então de feudal, isto é, uma economia fechada. Isto mostra exatamente esse problema mental nosso analisar realidade com os olhos de outra realidade, isto é, com o olhar europeu. Se na Europa houve um sistema feudal, então aqui deveria haver algo similar. Inclusive dentro da esquerda, acreditava-se que a transição do feudalismo para o capitalismo aconteceria da mesma forma em nossa região.
Cardoso começa a partir de 1974 a mudar sua posição. As suas formulações propõem que somos uma estrutura criada como dependente e por isso não teríamos condições de superar a dependência. Mas poderíamos vinculá-la com o desenvolvimento e a democracia. É possível uma democracia dentro da dependência, um capitalismo dependente que se desenvolva e continue criando unidades e setores econômicos novos. Até podemos falar, portanto, em um desenvolvimento capitalista dependente e dentro desse desenvolvimento existir uma democracia.
Marini responde muito duramente a este artigo. Nessa resposta ele procura mostrar exatamente como Cardoso está desenvolvendo as condições ideológicas para uma adesão à condição dependente, de subordinação ao capitalismo mundial. Esta adesão se converte 14 anos depois em uma prática política. Este debate não teve visibilidade porque o Fernando conseguiu ficar unilateral no debate, era só a posição dele, o outro lado era desconhecido. O Fernando foi ajustando seu pensamento ao Pensamento Único. Se a condição de dependência é, portanto, permanente e nela vamos desenvolver a democracia, não devemos mudar as condições de relação com a dependência. Se o capitalismo evoluiu para o pensamento neoliberal, devemos formular um pensamento correspondente. A idéia de que o Fernando disse para não lerem seus livros é totalmente falsa. Seus livros prepararam a adesão do setor dominante brasileiro ao sistema e a dependência de nosso país.
O Fernando construiu grande parte dos elementos para a hegemonia ideológica, mas não conseguiu estabelecê-la totalmente. No entanto, ela ainda se projeta, por exemplo, sobre o governo Lula e sobre o PT. O secretário geral do PT, que fundou e organizou o partido durante um bom período e foi um dos seus grandes ideólogos, o Francisco Weffort, foi Ministro de Cultura do Fernando Henrique durante oito anos.
Não houve uma quebra total, há uma continuidade. O Lula cada vez mais tem dificuldades para ajustar-se totalmente e o governo dele tem optado por seguir um caminho diferente.
Não existe ainda uma alternativa de pensamento bem constituída. Esta é uma das razões pela qual a teoria da dependência é tão pouco conhecida no Brasil, uma barreira que se criou sistematicamente. As afirmações que o Fernando fazia de que a teoria da dependência defendia a tese de que não era possível o crescimento econômico dentro de uma economia dependente, chamava-nos de estancacionistas.
Nunca defendemos esta tese. Ruy Mauro foi o primeiro a falar em 1965, no subimperialismo brasileiro. Estávamos discutindo o processo de integração explicando dentro da análise sobre a conversão do capitalismo brasileiro em um capitalismo financeiro. Esta era a base do sistema imperialista como Lênin estudou, ele mostrava exatamente que o capitalismo financeiro era a base do imperialismo. Procurávamos mostrar que o sub-imperialismo tinha problemas para se realizar, exatamente porque as contradições internas não eram superáveis pelo sistema, a não ser que houvesse uma queda da dominação imperialista externa do imperialismo dominante. Mas de qualquer forma a tendência ao sub-imperialismo existe, ligada a expansão do capital financeiro que nesse momento encontra-se em um nível de aumento bastante elevado no Brasil. Especialmente dentro das zonas sob dominação hegemônica norte-americana somos um dos países que está gerando um capital financeiro significativo, e a última fusão entre o Unibanco e o Itaú demonstra como estamos assegurando ao capital financeiro de gestão brasileira uma posição voltada para o exterior.
O Brasil apresenta um plano teórico articulado com os processos reais em suas várias modalidades. Esta é uma das características que demonstra o vigor deste pensamento teórico. Como este pensamento conseguiu se articular com o financiamento internacional, particularmente a Fundação Ford e converteu-se na principal referência para as Ciências Sociais brasileiras. O CEBRAP do Fernando Henrique e o Departamento de Ciências Políticas de Minas Gerais converteram-se nos centros de estudos a serviço da concepção da Fundação Ford, para desenvolver a democracia dentro da dependência e desta forma, fomentar o desenvolvimento econômico possível sem questionar o sistema mundial.
Nosso grupo se aproxima de outra corrente nos Estados Unidos, o grupo do sistema mundial que tem trabalhado conosco. Immanuel Wallerstein é um grande líder e tem feito um trabalho realmente de grande qualidade na análise do que representaria um sistema mundial como instrumento de análise do mundo contemporâneo, da formação do capitalismo como sistema e inclusive outras derivações como a orientação para o Oriente. A localização da China como a grande alternativa hegemônica aos Estados Unidos. Defendemos a tese da decadência da hegemonia norte americana. Tudo isso faz parte de um conjunto de análises que fizemos ao longo de muitos anos. Começamos a trabalhar juntos em 1972 quando o Samir Amin organizou em Dakar uma reunião, depois disso foram sendo feitas várias outras reuniões deste grupo do sistema mundial em várias partes do mundo, inclusive em Brasília
A teoria da dependência tem uma posição central no debate contemporâneo não só brasileiro mas internacional. A nossa corrente se mantém com um trabalho intelectual de forte influência sobre outras forças políticas que aderem a atitude crítica de confrontação com esse sistema. Claramente o Hugo Chávez; pelo menos uma ala do Partido Comunista Chinês; e algumas outras forças sociais são influenciadas pela teoria da dependência. Porque esse é o caminho da crítica, da libertação e da emancipação da nossa região. São experiências que estão articuladas em um pensamento que faz parte de um processo político de grande dimensão, ainda por se desdobrar.

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